sábado, 7 de junho de 2014

O Sagrado Vale de Contendas



O conjunto de todo esse recanto é um lugar de tanta tranquilidade
e paz que se assemelha a uma sublime e onipresente oração. A
paisagem do vale – morro entre morros –, e os acontecimentos relevantes
de uma vida inteira memorável, estão vivos, permanentemente nas
conversas de Amadeu – um senhor de idade.
O caminho, de escarpas nas bordas do morro, feito pelos passos
do homem que me conduz a um lugar cheio de silêncio. Sequer um
canto de passarinho aqui se ouve, nem qualquer zumbido de inseto.
Apenas o murmurejo da água, cristalina e fria, que rola nas pedras vinda
da mina.


Há cipós grossos e fi nos de São João, emaranhados a muitas moitas
entre antigas árvores e as barras, cocurutos de terras de barros escuros,
se arredondam: as enigmáticas sepulturas indígenas. E Amadeu
foi quem ali plantou, tempos passados, várias árvores ornamentais, às
quais ele se dedica em preservar e cultuar, de forma um tanto singular.
Ele se entusiasma com tais sepulturas que se mantêm intactas,
apesar de todo o tempo. A preservação lhes dá originalidade e o lugar
de modo geral se manifesta virginal. As árvores crescem na clareira do
vale... As folhas verdes transmudam de cor, quando raios de sol perpassam
pelas frestas vegetais.

De um lado a outro, há dois córregos de minas, trabalhados pelas
ferramentas mais rudimentares dos índios que outrora habitaram este
lugar... Hoje, essas relíquias são reverenciadas por Amadeu.
– Será que a água mantém fi os de ligação com vidas passadas?
– Indaga-me Amadeu. Eu nada digo. Apenas me perco, perplexo e radiante,
naquela paisagem.
Subimos o cume do morro, palhadas abertas onde vacas pastam,
e diante da pequena planície com árvore isolada, respiramos em pausa.
Percebi que Amadeu se cansava fácil, devido à idade. Porém disse:
– Apesar da minha convalescença, não me sinto cansado. O sertão
é a minha vida! – falou dissimulando a fadiga.
E, depois de alguns minutos, continuamos a caminhar no trilho
de vaca, estreito e tortuoso – serpenteando o pasto acima. Seguimos
além do gramado, até as outras sepulturas indígenas.
– Agora, venha seu senhor moço, que lhe vou mostrar outras sepulturas,
num total de mais de dez, esparramadas nesse terreno. Logo
acima a colina o mato foi roçado, capinado e acabou virando pastagem
para o gado. As sepulturas indígenas estão vulneráveis, o que leva seu
Amadeu a fi car ruborizado de raiva.
Com seu chapéu marrom e blusa azul de um único bolso, onde
se vê uma caneta e algumas notas de dinheiro. A gola triangular mostrava
sua camisa de marinheiro por baixo. Vestia também calça jeans
entrando bota adentro.

Amadeu me mostra os limites de sua propriedade: Terras de
Contendas, até o outro lado de lá de Ferrabrás. Paramos debaixo de
uma árvore de camará e ele respira forte. Um vento sopra morno, trazendo
aromas dos morros verdejantes. Amadeu retira do embornal um
punhado de pregos e arestas velhos e até enferrujados alguns.
Enquanto caminha, seu olho perspicaz não deixa de observar nenhum
detalhe do caminho. E comenta seu trabalho de preservação daqueles
matos nativos que proporcionam o gotejar de várias nascentes.
Explica que mandou fazer um poço artesiano, entre minas, de dezesseis
metros de profundidade. Acrescenta:
– O resultado é esse, ó senhor moço. A gente pode perceber e
sentir muito bem o quanto é refrescante essa água.
Então Amadeu se agacha e com suas mãos saboreia o melhor
paladar de água existente na terra.
– Mas, seu moço, você também não deveria calçar sandálias para
andar neste cerrado, pois as mordidas das formigas são terríveis – observou
e exclamou Amadeu.
Ele comenta que seu conhecimento está todo cristalizado em sua
vivência no sertão. Ele mostra a casa antiga de seu pai, onde aprendera
as primeiras letras, com um mestre que o pai contratara... Amadeu tem
ânsia para falar...

No entanto, ele lamenta que seu tempo de aula durara parcos
dois meses e sete dias – foi a permanência do mestre naquele vale.
Flashes da infância lhe sobrevêm com frêmitos de saudade: o trabalho
na lavoura, a colheita do feijão, do milho, da cana-de-açúcar, da
mandioca... O transporte dos frutos da lavoura para a cidade próxima...
A coberta onde ainda hoje ele mantém dois carros de bois...
Agora o caminho de volta é entre pareados pés de coqueiros de
macaúbas. Dali num trilho, totalmente particular, vai dar num lugar
ainda mais recôndito – a igrejinha branca do Dom Orioni. O sino de
bronze de quinze quilos está ao lado direito da igrejinha, pra quem vem
descendo, os banheiros construídos pelas mãos de Amadeu e o campanário,
que deu estima a ele, o galpão modo de abrigar os fi éis, muitos
vindos de longes lugares e cidades. Isto quando sua família arranja jeito
de celebrar missa, apresentações de folias de reis e congados – ambas
de todas gerais e minas.

Ao passar pela tronqueira, ele percebeu a falta de uma aresta no
arame farpado. Então do bolso da calça jeans, retirou um martelo e do
embornal uma aresta e tratou logo de retifi car a cerca que circunda todo
o campanário. E diz:
– Quem despreza algo aparentemente imprestável, mais tarde
sentirá falta dele!
O orgulho de Amadeu é a igrejinha do Dom Orioni. O Santo Luís
de Orioni, segundo lhe contara compadre Gamalieu, está intacto na capital
do Vaticano.
– Olha, seu moço, hoje o dinheiro pode tudo, quem o tem faz
algo e quem não tem vive no simples da vida. Na época em que eu
era moço, só havia trabalho e trocas de mercadorias. O trabalho que
trazia ontem mantimentos é hoje o dinheiro que traz algo a mais. Na
minha época o dinheiro era difícil. Para você pôr idéia, nem havia por
essas paragens um relógio. O trabalho se iniciava com a luz do dia e
terminava com o início da noite. Havia grandes empreitadas... O milho
colhido era para criar porcos; o feijão para o sustento da família; a cana
para fazer o melaço, açúcar preto e rapadura e a mandioca o polvilho e
a farinha. A produção excedente era conduzida por carro de bois a cidades
vizinhas – carreado por mim –, por essa estrada e morros acima.
– Amadeu não cansa de falar.
A tronqueira de arame é aberta por ele e caminhamos em direção
à casa nova – casa amarela – que se tornou o sítio para os seus fi lhos que
às vezes aparecem. Após se casar, por muitos anos, Amadeu trabalhou
e viveu na cidade grande para educar e colocar seus fi lhos para a vida.
E continuou sua prosa:
– Aqui antes na casa viveu meu pai, o senhor Olegário, médico
prático – reconhecido em muitas freguesias distantes. O meu pai obteve
permissão, com carta assinada, de outros médicos especializados,
abonando-o como autoridade de clinicar. Ele era procurado para tudo
– muitas pessoas também vinham aqui para o meu pai dar o melhor parecer
nas questões de intrigas e rixas por disputas de terras. Aqui então,
pôs o nome de Contendas. Ele resolvia as brigas e também curava, pois
conhecia plantas medicinais que curavam os males do corpo e da alma.
Dentro da casa, Amadeu sem se acomodar, ainda acrescenta:
– Aqui olha, seu moço, a televisão veio para deseducar e jogar
em nossas memórias o que não serve; sem pedir licença a ninguém; sem
nenhuma permissão. A televisão destruiu o sertão e a modernidade
acaba com o mundo. O moderno é pura decadência humana, pois nos
impõe seu modo de ver e sentir o mundo, desrespeitando nossas raízes.
Indignado, Amadeu de cabelos já grisalhos, aponta a antena de
TV a cabo, sobreposta ao lado da casa amarela.

Voltamos a caminhar, entre o curral e a sombra do pé de jatobá.
Logo à frente, na foz da mina que fi ca à direita do morro, entre
pés de coqueiros de macaúbas e de muitas plantas ornamentais e
medicinais está localizada a casa de Amadeu – tamanho teluricamente
apropriada ao aconchego dele; escondido de todos do mundo – onde
ele não ouve notícias nem sequer conversas truncadas de vizinhos.

Aliás, vizinho por ali nem tem um por perto. Amadeu ouve apenas
no radinho de mão – antigo –, as rezas do terço pelas manhãs e que
o acompanha ao sair de casa na hora da missa vespertina, porque, às
vezes, o trabalho lhe acode. Ouve missa e trabalha...
Raramente ouve notícias de futebol. Ademais trabalha, o que
não é de costume aos homens de sua idade, porque esses já estão mais
para o outro lado do que pra cá. Com bravios olhos mansos, dentro
de sua casa seu olhar procura, desesperadamente, os melhores livros –
parcos, porém guardados desde quando entendia por gente – amontoados
numa prateleira perto da cozinha, e, assim, esses são consumidos.
E o espírito dele ali se alimenta, aumenta, e se sente mais livre.
Pedaços de matéria recortadas de antigos jornais... Pequenos pedaços
de lápis; folhas de papéis multicores, manuscritos; papéis almaços; cadernos
e cadernetas de formatos que não se encontram mais... Na prateleira
tudo se acha...

De repente, o celular toca no carro e o moço, já na despedida,
ligando o automóvel, vê Amadeu lhe dando as costas e se dirigindo a
sua casa, com toda a sua tranquilidade sertaneja. E da pequena janela
de sua casa acena com um adeus.
Atrás a paisagem do vale de Contendas se desperta pelas curvas
bem traçadas dos morros e o maior deles – onde afl ora mina d’água
dos dois lados, logo abaixo em destaque a igrejinha de cor branca, a
casa nova arcada pela vegetação e as sepulturas indígenas ocultas – e,
sobretudo, os acontecimentos relevantes que vivos, estão na memória
incomensurável de Amadeu. O único homem capaz de enxergar que as
águas que ligam os dois córregos, um acima do outro, sobem... Com os
seus oitenta e dois anos de idade...

Volto... Em arrebatamento! Sei que estas paisagens para sempre
estarão estampadas em minha memória.
Mas por agora, as vejo desaparecendo no retrovisor do carro...

Conto do Livro Todos os dias de ontem